Doce Espera: diário da mamãe e do bebê

[Contos de Halloween] Rua Paraná, número 43 por Luiz Moreira

Olá leitores!

- Gostosuras ou travessuras!

As cinco crianças disseram em uníssono quando o velho do número 43 abriu a porta. Perceberam de imediato que ele era incrivelmente rabugento, com a feição carrancuda e esnobe. As crianças imediatamente souberam que não iriam tirar grandes doces dele, e levando em consideração a cota da noite, não haveria realmente nenhum doce extraordinário para o dia seguinte. Ninguém havia se empenhado nesse ano na hora de comprar as guloseimas. Que droga de Halloween foi esse, os mais velhos pensaram. Os mais novos, no entanto, estavam tão empolgados com suas fantasias que nem sequer ligavam para os doces que acumulavam em seus sacos, em cada casa se prendiam ainda mais em seus personagens que estavam seus rostos pintados e roupas costuradas pelas mães há meses, aquela era a verdadeira diversão deles. 

- Vocês aprontam o ano inteiro e ainda dão uma data para que possam fazer isso sem que haja nenhum castigo, que grande merda é essa. – O velho disse encarando todas aquelas carinhas por debaixo de suas fantasias extravagantes.

- Deixa eles, Bastião! – Disse uma voz feminina de dentro da casa. 

Bastião fechou ainda mais a cara.

- O que vocês querem? Eu não tenho doces nenhum, pestes!

- Gostosuras, ou... Travessuras. – O Garoto da frente vestindo uma fantasia do Drácula diz. Sua máscara pendia em sua cara por ser muito maior que seu rosto. 

- Travessuras! Vocês arruinaram o meu jardim, quebraram a minha vidraça com essa maldita brincadeira de jogar bola. Fazem essas malditas travessuras o ano inteiro, deviam fazer um feriado que deixassem vocês preso em casa, não essa merda de dia das bruxas. Vão embora, vão! Antes que eu roube esses doces de vocês!

- Bastião! 

A voz dentro da casa voltou a dizer. As crianças já estavam assustadas o suficiente para ir embora, mas permaneciam no alpendre na esperança de ganhar ao menos uma bala de caramelo. 

- Eles servem! – A voz continuou, soava como uma senhora ao ponto de morrer. 

Bastião antes de dizer qualquer coisa analisou as crianças que o encaravam. As crianças continuaram paradas no alpendre, tentavam olhar pela fresta da porta que Bastião não tampava com a sua barriga redonda e caída, mas não conseguiam ver a dona da voz. Entretanto conseguiam ver o interior da casa, estava toda decorada com abóboras com olhos brilhantes, morcegos de papel nas paredes e era sem dúvida a casa mais bonita da cidade que eles estiveram até agora. 

Tinha um grande candelabro pendurado no centro da sala, um tapete vermelho no chão, uma mesa de centro com 12 cadeiras de madeira acolchoadas, uma estante cheia de livros e uma lareira que queimava majestosamente. Além de tudo isso havia um cheiro suculento de comida recém feita. O cheiro era o que mais chamava a atenção das crianças, para um tinha o cheiro de uma enorme taça de sorvete de chocolate e calda de morango, para outro era igual ao cheiro da torta de maracujá que a mãe fazia no natal. A voz da velha também despertava o sentimento que as crianças tinham de mais intenso: a curiosidade. Elas não sentiam medo, sentiam uma incrível vontade de segui-la e de abraçar a dona. 

Bastião sorriu para elas, era um sorriso largo amarelado e com poucos dentes. 

- Eu tenho uma deliciosa torta de chocolate lá dentro, vocês querem?!

Todas as crianças balançaram a cabeça dizendo que sim, estavam animadas para entrarem na mansão à sua frente. Grande parte delas nem mesmo saberia como se portar a mesa, nunca haviam sentado em cadeiras tão grandes e nem mesmo sabiam o gosto de uma torta de chocolate. 

- Mas antes tenho uma pergunta para vocês, a resposta que mais me agradar vai ganhar uma taça extra de pudim com sorvete. 

As crianças já sentiam o cheiram da torta e das sobremesas que estavam sendo preparadas na cozinha provavelmente eram feitas pela voz aconchegante da velha. Suas bocas salivavam e as mãozinhas coçavam para abraçarem o banquete. 

- Qual a pior travessura que fizeram esse ano?

As crianças demoraram um pouco para absorver a pergunta de Bastião, pareciam presas em um transe. Bastião sorria para elas e sua feição rabugenta dava lugar a um rosto bem mais convidativo. O primeiro a responder foi o garoto do fundo, vestia uma jaqueta de couro e tinha um machado de plástico nas mãos. Nenhuma máscara, só uma maquiagem feita às pressas em forma de cicatrizes costuradas. Devia ter no máximo doze anos.

- Eu quebrei a vassoura na cabeça do poodle do Sr. Aroldo. 

Bastião tinha em seu olhar uma excitação sádica

- Ele morreu, não é? – Ele diz quase pulando de alegria. 

- Não, eu acho que não, saia sangue da sua cabeça... – A criança tinha medo de suas palavras, mas as cuspia como se não as controlasse mais. – E do seu nariz.

- O que você fez? 

- Corri.

- Correu com o rabo entre as pernas, certo?! – Bastião soltou uma gargalhada aguda e estridente, as crianças soltaram sorrisinhos tímidos em resposta. – E você? – Ele diz apontando para o garoto do lado, ele tirou a máscara de bruxa que usava. – O que você fez? 

- Eu roubei a mercearia mês passado.

- Onde? 

- No final da Rua Paulo coelho.

- A mercearia da Dona Madalena. – Bastião esfrega as mãos uma na outra. – Quanto?

- Quarenta e sete reais. 

- E o que você fez depois. 

- Eu comprei balas e cigarros.

Os olhos de Bastião brilhavam cheios de deleite.

- Eu queimei o vestido da minha mãe enquanto ela trabalhava.

A única garota diz, de todos a sua fantasia era a mais cara, vestia um vestido rosa cheio de lantejoulas, carregava em sua mão uma varinha de madeira detalhada com pedrinhas brilhantes. No topo de sua cabeça uma coroa de princesa prendia seus cabelos negros alisados. 

- Porquê?

- Eu sabia que ela iria usar de noite com o homem.

- Homem?

- Eu nunca sei os nomes.

- Você ficou com ciúmes?

- Sim!

Bastião chegou o rosto bem perto dela e sussurrou:

- Mas parte de você gosta de vê-la com eles.

A criança demorou a responder.

- Sim! – Ela diz olhando para os pés.

- Temos só mais dois agora! – Bastião diz olhando para os dois meninos da frente, o que tinha a máscara do Drácula foi o que falou primeiro. 

- Eu fiz sexo com a minha irmã.

Bastião gargalhou como nunca, o barulho de sua risada ecoava na rua deserta atrás das crianças, lágrimas escorriam de seus olhos cheios de rugas. Logo as crianças riam junto com ele. Ingenuamente elas achavam graça no que o amigo acabara de dizer, algumas delas nem sabia o que significava. Bastião por outro lado não ria por achar graça ou duvidar da criança, ria de satisfação.

- Você fez sexo com ela? – Bastião perguntou passando a língua lascivamente pelos lábios.

- Eu a beijei – O garoto continuou. – E passei a mão nela. 

- Quantos anos ela tem?

- Quatorze.

- E você?

- Treze.

- Então eu acho que a grande travessura é mérito da sua irmã, não é mesmo?

- Eu a forcei.

Bastião bateu palmas.

- Eu disse que se ela não fizesse eu ia socar a cara dela. 

- Minha nossa, garoto. Acho que temos um vencedor aqui!

- Eu tentei matar o meu irmão. 

O último garoto diz. Bastião o observa com desejo. Embora fosse barata, a fantasia de morte lhe caia bem. 

- Eu tentei mata-lo afogado na banheira enquanto ele tomava banho. 

- Porquê não terminou?

- Minha mãe chegou e me tirou de perto dele.

- Você o odeia.

- Ele nunca deveria ter nascido.

- Quantos anos ele tem?

- Quase um.

- E você tentaria de novo? 

- Sim. 

O garoto diz sem nem mesmo pestanejar.

- Você está certa, mãe! Eles servem!

Bastião abre um sorriso enorme e os convidam a entrar, as crianças todas entram na casa sem medo algum, apenas com desejo e fascínio. Observam a sala ornamental com os olhos cheio de brilho, tocam as decorações e fazem perguntas o tempo inteiro sobre o que era cada uma das coisas que elas viam, Bastião respondia todas com enorme simpatia. Para um contentamento maior das crianças elas veem a dona daquela voz e como antes sentem vontade de abraça-la, mas antes que elas cheguem perto da velha, sentada em uma cadeira de costas para elas, volta a falar.

- O que vocês mais gostam nessa vida, crianças? 

Elas pararam estarrecidas.

- Comer? Um grande pedaço de torta suculenta com um copo de leite quente? Uma taça de sorvete com cereja e cobertura? 

A senhora não esperava nenhuma resposta das crianças.

- Ou vocês preferem uma pizza quentinha só para vocês, sem precisar dividir com o irmão ou a irmã ou com os seus pais, hein! Vocês gostam? Vocês sabem do que eu gosto? Não é de comer esses doces absurdamente deliciosos, nem mesmo fingir ser um super-herói. Não! Estou muito velha para isso. 

A cadeira rangeu enquanto a senhora se ajeitava nela, as crianças estavam agora mais perto, atraídas pela conversa calorosa.

- Eu gosto de fazer uma única coisa e nossa! Como eu faço isso bem!

Bastião soltou novamente uma risada estridente.

A luz falhou. Por alguns segundos as crianças ficaram no escuro, quando a claridade voltou tudo havia mudado. Não estavam mais em uma mansão e sim em um casebre abandonado fedendo a mofo, o chão de madeira rangia e cheio de baratas, as janelas eram lâmpadas por tábuas de madeira. A luz que antes saia de um majestoso candelabro pendia agora amarelada e fraca do teto sem nenhum ornamento ao seu redor. 

A cadeira ainda estava na frente dele, agora acabada e podre. As crianças não mais ludibriadas pelo cheiro que sentiam antes permaneciam imóveis agora por causa do medo. A senhora sentada na cadeira se levantou, media mais de dois metros com facilidade, em sua cabeça um cabelo ralo caia em alguns pontos em seu ombro, mas a grande parte de seu couro era careca. Seus braços caiam até quase tocar o chão, suas mãos enrugadas tinham dedos magros e compridos. 

Ela se virou e as crianças olharam fundo para o buraco que deveriam estar os seus olhos. Elas gritaram de medo pela primeira vez. A velha então caminhou até eles com passos pesados que pareciam ao ponto de quebrar o assoalho. Uma gosma amarelada escorria de sua boca sem nenhum dente quando ela disse as últimas palavras que aquelas crianças escutariam.

- Eu gosto de matar! 

💀💀💀

Os policiais chegaram ao casebre, número quarenta e três ao final da Rua Paraná já ao meio dia do dia de finados. Receberam a ligação dizendo que um cheiro insuportável vinha de lá. A casa, já há um tempo abandonada, vez ou outra é alvo de algum crime. Casas abandonadas tendem a chamar meliantes e usuários de drogas e algumas vezes eles passam do limite. O delegado deu a ordem pra arrombar a porta e com facilidade os guardas adentraram. Revistaram a casa com poucos cômodos e por mais que sentisse o cheiro de podridão não encontraram nada.

O delegado, homem experiente e vigoroso foi o primeiro a vomitar no chão ao abrir a porta que dava para os fundos e encontrar a origem do cheiro. Nenhum outro guarda ousou passar daquela porta. 

Cinco crianças estavam penduradas na árvore de óleo, a corda envolta de seus pescoços, de imediato o delegado percebeu elas não morreram asfixiadas, seus pescoços haviam sido cortados de forma grotescas. Suas fantasias de Halloween estavam avermelhadas por causa do sangue que escorrera de seus cortes. No chão, aos pés da árvore, uma poça d'água escarlate. As moscas já se banqueteavam da carne quase podre das crianças e do sangue coagulado no chão. A árvore estava verde e cheia de folhas e o sol da primavera brilhava no céu. O delegado nas primaveras vindouras não mais se lembraria do cheiro das azaleias, mas sim do cheiro da morte no casebre de número quarenta e três. 

O velório das crianças aconteceram dois dias depois, os responsáveis nunca foram encontrados. Porém, diziam que sempre no Halloween era possível ver uma luz acesa no casebre e um cheiro delicioso de torta de maçã.

Luiz Filipe Moreira, 24 anos, é mineiro com alma de poeta. Escrever tornou-se uma das suas maiores paixões, como disse Bukowski "Um bom poeta pode fazer uma alma despedaçada voar." Atualmente publica seus devaneios literários no Wattpad.
Wattpad @Moreiraluiz

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