Doce Espera: diário da mamãe e do bebê

[Contos de Natal] Um Conto de Natal por Luís Fernando Carvalho Cavalheiro

Olá Leitores!

Iniciamos as postagens com um conto muito emocionante (ou eu que sou manteiga derretida). Ele nos conta que o mundo ainda tem esperança, talvez não do jeito que queremos, mas como deve ser, e que a ajuda vem de quem menos esperamos.

Um Conto de Natal
Por Luís Fernando Carvalho Cavalheiro

   Em sua poltrona, Alfredo refletia sobre sua vida indiferente ao microuniverso ao seu redor. A fumaça do cachimbo churchwarden escapava preguiçosamente pela janela, deixando um aroma de tabaco e chocolate para trás. Aquela tinha sido sua rotina de fim de dia nos últimos vinte anos, desde que sua segunda esposa morreu e ele, por vontade própria, se recolheu a um asilo. Na sala de suas acomodações, uma televisão de tela plana descansava quase sem ter sido usada – Alfredo ainda era um grande fã de rádio, e com o advento da internet usava esse meio para ouvir estações de várias partes do mundo –, e ao lado dela as fotos dos dois filhos homens que teve com a primeira esposa. Hoje eles estavam com seus setenta e alguns anos, aposentados e bem-sucedidos na vida: um deles foi presidente de uma estatal, e o outro diretor-sênior de uma instituição bancária. Acima do eletrodoméstico estava a foto de sua terceira filha, fruto do segundo casamento, bem mais jovem que os meio-irmãos. No auge de seus cinquenta anos, ela insistia no mal-remunerado sacerdócio da docência na Educação Básica, o que fazia Alfredo precisar ajudá-la financeiramente em não infrequentes ocasiões. Ainda assim, era a única filha que se interessava em ligar para ele e visitá-lo no asilo, fato que ele jamais esqueceu. Numa mesa em frente a poltrona estava o MacBook de última geração – Alfredo achava a interface dos Windows simplesmente primitiva demais –, seu principal meio de contato com o mundo fora do asilo.

   Naquele dia, ele casualmente esqueceu o computador ligado e com o navegador aberto em uma rede social. Enquanto fumava, ele observava o fluxo de postagens em sua linha do tempo e mensagens recebidas de seus contatos, mas o hábito do pito, cultivado primorosamente desde seus quatorze anos, demandava devoção e exclusividade. O fornilho ainda estava pela metade, indicando, entre outras coisas, que ainda faltava quase uma hora, pelo menos, para que sua meditação chegasse ao fim. Porém, por mais que ele se esforçasse para ignorar o computador e seus barulhos, estes o atrapalhavam de uma tal forma em sua meditação que, contrariado pela aparente ausência de opções, Alfredo se viu obrigado a responder algumas mensagens. Com o cachimbo equilibrado na boca, ele se curvou para pegar o computador e pô-lo em seu colo. Viu logo de cara que recebera duas mensagens de seus filhos mais velhos, ambas bem formais, desejando-lhe feliz Natal. Surpreso, Alfredo consultou o calendário, pois sempre foi muito ruim com datas, e viu-se na véspera do Natal. Ele deu de ombros, pois não gostava de cear com os companheiros de asilo por considerar aquilo depressivo demais – um bando de idosos abandonados ou esquecidos por suas famílias tentando sorrir apesar do descaso –, mas uma mensagem de sua filha o fez ficar sobressaltado e curioso. A mensagem dizia apenas, “Vista sua melhor roupa, pai.”

   Sem ter como decifrar o enigma da mensagem da filha, Alfredo fechou o computador e pôs-se a refletir na mensagem dela. Apesar de seus mais de noventa anos, ele era um senhor com aparência imponente e distinta, e suas pernas firmes dispensavam a bengala. Andava sempre bem alinhado: sapatos de couro, calças e camisas sociais, colete de lã feito a mão (ganhava um todo ano em seu aniversário, presente de sua filha), gravata borboleta, e paletó nos dias mais frios. Até seus pijamas eram bons e passavam uma boa impressão. Por isso ele ficou sem entender o “Vista sua melhor roupa, pai.”, mas suas reflexões foram curtas: se um enigma não tem solução, não vale a pena ficar pensando nele. Ele retornou para suas reflexões e para os pitos ritmados e tranquilos em seu cachimbo. Logo ele esqueceu a mensagem da filha e entregava-se para o hábito relaxante adquirido há tanto tempo, e o cheiro de tabaco e chocolate voltou a predominar no recinto, escapando preguiçosamente pela janela.

   Assim que terminou seu rito diário, ele esvaziou as cinzas brancas em um cinzeiro de vidro convenientemente posto ao alcance de sua poltrona e se pôs a meditar sobre a vida. Os filhos mais velhos pareciam ignorar sua existência, enquanto Flávia, a mais nova, mantinha um contato mais próximo, ainda que irregular devido às rotinas típicas de um professor e as incompatibilidades destas com os horários de visitação do asilo. Não que a ausência dos outros filhos realmente o perturbasse, mas em datas festivas ele se sentia particularmente condoído pelo fato de ser lembrado apenas pela filha que considerava um fracasso ambulante. Ele havia insistido muito para que ela se tornasse advogada, mas para Flávia lecionar História para pré-adolescentes era uma tarefa muito mais nobre e edificante. Mais de uma vez ela recusou ofertas para ter um negócio próprio, como uma escola ou um cursinho preparatório, servindo como exemplo prístino do educador realmente apaixonado e entregue à sua missão semidivina de levar conhecimento aos alunos da rede pública. Semidivina não era uma ironia: ela já tinha sido agredida por alguns alunos, um deles tendo atirado um frasco de ácido em sua face e a desfigurando permanentemente. Mesmo assim, ela insistia na carreira, dizendo que não seria uma maçã podre que caracterizaria a totalidade do cesto. “É engraçado”, ele pensou, “que eu sempre pense em Flávia mas não nos meus outros filhos.”

   Duas batidas sutis na porta de seus aposentos o acordaram de seu devaneio. Consultando o relógio de parede, viu que era a hora em que um enfermeiro deveria trazer seus remédios. Alfredo levantou-se lentamente de sua poltrona e caminhou com seus passos firmes e calculados para a porta. De fato o enfermeiro o aguardava na porta, mas não trazia os remédios. Ante a face confusa do ancião parado à sua frente, o enfermeiro sorriu meio sem graça e disse com um tom de desculpas na voz:

 — Senhor Alfredo, o senhor tem uma visita. O senhor deseja descer agora ou vestir algo mais apropriado?

   Imediatamente ele se lembrou da mensagem da filha. Ele pediu para que o enfermeiro aguardasse enquanto colocava um de seus melhores ternos: um cinza-chumbo de casimira com forro em seda num tom mais escuro, uma camisa branca bem passada, uma gravata borboleta preta, um colete púrpura com brocados prateados e sapatos pretos de cromo alemão. O enfermeiro aguardou pacientemente enquanto Alfredo se produzia, e então o acompanhou não para o hall de visitantes, mas para a sala de jantar do asilo. O ancião achou estranho, mas decidiu não comentar ou perguntar nada durante o trajeto. Na porta da sala de jantar, o enfermeiro perguntou delicadamente se poderia vendá-lo, e ante a reação de espanto de Alfredo explicou-se em um tom suave:

 — Temos uma surpresa para o senhor, mas para isso será preciso vendá-lo. Desculpe-me, senhor Alfredo.

   Dando de ombros, o ancião consentiu ser vendado e conduzido pelo enfermeiro. Apesar da venda ele conseguiu discernir que as luzes estavam parcialmente apagadas, e isso o deixou deveras curioso. Ele foi levado até uma cadeira confortável, quase uma poltrona, e o enfermeiro o ajudou a se sentar. Alfredo então sentiu que as luzes foram todas acesas e teve a venda tirada de seus olhos.

   Surpresa não chega nem perto de descrever a reação mental de Alfredo ao que seus olhos viram. Todos os internos do asilo estavam reunidos ao redor de uma mesa com uma farta ceia de Natal, ele sentado na cabeceira, e do outro lado da mesa estava sua filha Flávia, envergando um tailleur preto com uma blusa de seda vermelha. Ao lado ou atrás de cada um dos demais idosos, estavam em pé seus parentes vivos, todos aparentemente contentes com a oportunidade de passar um dia especial com seus entes queridos. Alfredo olhou para os lados como se procurasse por uma explicação, que veio da voz, gritada e roufenha pelos anos de profissão, de sua filha:

 — Feliz Natal, pai! Achei que o senhor fosse gostar dessa surpresa!

   Alfredo realmente adorou a surpresa. Não era uma ceia como as anteriores, depressivas porque todos ali se sentiam abandonados por seus parentes. Havia realmente nos olhos de cada um dos internos um brilho de alegria e satisfação por estar com seus parentes dividindo um momento tão especial. Observando melhor, ele viu que havia até um Papai Noel sentado em um trono num ponto em que ele poderia ver a mesa toda. Alfredo se levantou com a usual altivez, caminhou até a filha e perguntou em um tom baixo e discreto:

 — Não que eu não esteja feliz com a surpresa, filha, mas como você conseguiu realizar tal prodígio?

   Flávia deu um risinho nervoso antes de responder:

 — Ganhei na Mega-Sena, pai. Decidi então fazer essa surpresa, já que o senhor reclamou como as ceias de Natal aqui costumam ser mórbidas. Reuni todos os parentes que pude encontrar dos demais idosos daqui, organizei essa ceia especial e trouxe até um Papai Noel, apesar de saber que o senhor não acredita nessas coisas.

   Alfredo abraçou a filha, pediu licença e foi cumprimentar todos os seus colegas e seus parentes. Ele se sentia imensamente feliz por vê-los tão extasiados pela presença dos filhos, sobrinhos, netos e outros membros de suas famílias. As crianças, netos e bisnetos deles, se divertiam com o Papai Noel, que lhes distribuía presentes, contava histórias natalinas e representava muito bem a figura do bom velhinho. Conversou com muitos deles, e viu que a história de todos ali refletia aquela imagem de abandono que o asilo lhe passava – Alfredo, como bom leitor de pessoas, sentiu, acertadamente, que a maioria estava ali mais por obrigação do que por de fato gostar dos anciãos de suas famílias.

   Depois da ceia e das confraternizações, Flávia chamou seu pai em um canto e cochichou de modo que somente ele a ouvisse:

 — Mas a melhor surpresa não é essa, pai. Eu quero te pedir para vir morar comigo. Agora que não preciso nem pretendo mais trabalhar, terei tempo para me dedicar ao senhor. É claro, se o senhor quiser.

   Alfredo refletiu um tempo sobre a proposta da filha. Decidira se internar no asilo não apenas porque não queria ser um peso para a família, mas por saber que seus filhos mais velhos não davam a mínima para ele e Flávia não tinha condições para cuidar dele apropriadamente. Mas agora, dada a boa sorte dela, a situação mudou.

 — Filha – disse ele após o silêncio –, eu não atrapalharia sua vida?

   Flávia riu genuinamente antes de responder:

 — Claro que não, pai! O que me corta o coração é ver o senhor aqui, como se fosse um traste jogado fora. Se César e o Júnior tivessem um pouco de bom senso, teriam feito essa proposta para o senhor, mas já que eles não têm…

   Alfredo pensou em objetar, porém achou melhor não. Ele realmente estava cansado de ficar ali sozinho no asilo mesmo.

   A ceia transcorreu normalmente. À meia-noite o Papai Noel entoou uma clássica canção natalina, que todos os idosos acompanharam ébrios da alegria de estarem ali com seus entes queridos – mas que para os olhos de Alfredo foi deprimente, pois os parentes deles não compartilhavam do mesmo entusiasmo, o que lhe fez concluir que seria muito melhor aceitar a oferta da filha antes que aquela apatia o matasse.

   No dia seguinte Alfredo, com o auxílio de dois enfermeiros, começou a empacotar suas coisas, pois Flávia havia marcado de buscá-lo ao meio-dia. Apenas três coisas ele deixou nos seus aposentos: a televisão e as fotos de seus outros dois filhos.

Luís Fernando Carvalho Cavalheiro é professor de Filosofia e escritor nas horas vagas. Embora tenha algum talento para poesia e literatura fantástica, prefere escrever contos de horror. Já publicou em três antologias da Editora Andross, e concorreu a dois Prêmios Strix em 2017.

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